“A Máquina do Mundo”
Por Maurício Silva* | Fotos: Criativo Mercado Editorial | Adaptação web Caroline Svitras
Há exatos trinta anos após seu falecimento, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) é hoje um dos poetas mais mais estudados — e admirados — da literatura brasileira.
Sua poesia estende-se por um vasto período de tempo e por uma interminável gama de temas e motivos literários, sem nunca perder o tom lírico, muitas vezes crítico, muitas vezes lisonjeiro. Talvez, o melhor qualificativo para sua poesia tenha sido dado por Davi Arrigucci, que, num estudo definitivo, caracterizou-a como sendo marcada por um denso lirismo meditativo (ARRIGUCCI, 2002).
Sua invejável maestria pode ser comprovada em um dos mais instigantes e contundentes poemas, fonte inesgotável de reflexão humana e fruição estética: “A Máquina do Mundo”, pertencente ao livro Claro Enigma (1951) e que, apenas a título de curiosidade, já foi eleito, por um conjunto de críticos e escritores, “o melhor poema brasileiro de todos os tempos” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2000, p. 16).

A ideia de Máquina do Mundo — título e tema principal do poema — não é nova na literatura: refere-se, resumidamente, ao sistema cósmico do mundo, ao modo como ele funciona e a tudo o que ele rege e congrega. Na ciência antiga, medieval e renascentista, ela foi estudada — no campo da astronomia e da astrofísica — por nomes como os do grego Cláudio Ptolomeu (90-168), em sua obra Almagesto; pelo escocês Johannes de Sacrobosco (ca. 1195-ca.1256), com seu Tratado da Esfera; e pelo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), na obra Da Revolução de Esferas Celestes.
Contemporaneamente, como sugerimos, é no poema “A Máquina do Mundo” de Drummond que este motivo literário ressurge em toda sua beleza estética e profundidade reflexiva, numa leitura que busca conciliar a grandeza do empreendimento divino e a fragilidade humana, diante da engrenagem fatídica do Destino. Vejamos o poema por inteiro:
“E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas”.
(ANDRADE, 2008, p. 281-285)
Desde o início, verifica-se a intenção primeira do poeta: revelar ao leitor o “funcionamento” do universo, seu mecanismo obscuro que se desvela, seguindo uma ótica estritamente pessoal. Máquina, aqui, é mecânica e enigma…
As três primeiras estrofes (que formam, no seu conjunto, um único período) tratam, assim, da abertura do mundo e revelação do eu poético: a princípio, o mundo encontra-se fechado — vale dizer, o enigma ainda não fora revelado ao poeta —, donde ressume um imperativo sentido de negatividade: a estrada é pedregosa, o sino possui um som rouco, o som dos sapatos do poeta é seco, o céu apresenta-se numa coloração plúmbea e o próprio ser encontra-se desenganado. O que está fechado é oculto; e o oculto é negativo: há a lentidão (passos pausados, aves pairando lentamente); há a escuridão, a enfatizar o sentido de fechado/oculto (“fecho da tarde”, “céu de chumbo”, “escuridão maior”); há, enfim, a dureza (estrada pedregosa, céu de chumbo). Tudo, portanto, conduz o leitor a uma atmosfera de encerramento completo, absoluto. As imagens pesam, como a sufocá-lo por completo. Daí a necessidade de abertura, de revelação, de epifania.
Finalmente, a Máquina do Mundo se revela: abre-se subitamente às vistas do poeta. Não é um abrir-se calmo, previsto — antes, trata-se de um romper abrupto (embora silencioso), diante da manifesta esquivança do poeta. O enigma será revelado!…
Têm-se, em seguida, duas aberturas consecutivas: a primeira, exposta nas três próximas estrofes; e a segunda, exposta nas cinco outras. Logo na primeira abertura — epifânica, “maravilhosa” —, a Máquina do Mundo se revela pura, majestosa e circunspecta. Em suma, trata-se de uma imagem mítica do universo e de sua mecânica. O eu-poético, por sua vez, como contraste ao “maravilhoso” e ao fantástico, revela-se decadente: as pupilas gastas, a mente exausta, os sentidos perdidos. A Máquina do Mundo é mítica, e a realidade onde o eu habita manifesta-se em sua forma mais ínfima. Em outros termos, há uma flagrante oposição entre a Máquina e o eu, que se traduz numa oposição direta entre o mundo mítico (“maravilhoso”) e o mundo real (árido, enfermo).
O Eu Lírico
Uma segunda abertura faz-se necessária. Nesta, repetem-se elementos presentes na primeira: a relutância do eu, diante da maravilha mítica; a pureza da máquina, em oposição à enfermidade do eu-poético; e a ênfase no caráter mítico da Máquina (“natureza mítica das coisas”).
As quatro próximas estrofes apresentam a “fala” da Máquina, o discurso do enigma revelado. Há uma exortação para que os sentimentos do poeta se abram, tal como ocorrera com a própria Máquina do Mundo: um apelo para a abertura e para a manifestação sinestésica do poeta. A Máquina, nesta parte do poema, reafirma ainda mais sua natureza mítica: ela é sublime, formidável, gênese de tudo. As próximas estrofes tratam da revelação em si mesma, o auge da abertura e do desvendamento do enigma: tudo se mostra aos olhos atônitos do poeta. A mecânica atinge a totalidade!
Mas o poeta recusa o desvendamento, e as próximas estrofes marcam o seu distanciamento. O eu reluta ainda mais em aceitar a revelação, desaparecendo até mesmo o artifício da sinestesia. Finalmente, com o fechamento da Máquina, atinge-se o círculo perfeito: as primeiras estrofes são retomadas, o eu readquire sua aura negativa e tudo volta a ficar como antes. O poeta segue vagaroso, “de mãos pensas”.
Em “A Máquina do Mundo”, o poema, Drummond nos apresenta uma visão mítica, mas ao mesmo tempo radical, do mundo e dos seres que o habitam. O homem, joguete do Destino, avança e recua diante do “mistério”, jamais indiferente a ele. Analisando o que chama de poética da interrupção em Drummond, Reynaldo Damazio lembra que “a interrupção pode ser entendida como princípio ético-estético, ou núcleo significante elementar, do que há de mais próprio e intenso, e válido para a posteridade, na poesia de Drummond” (DAMAZIO, 2002, p. 50). Com efeito, em “A Máquina do Mundo” esse efeito ético-estético atinge — ao lado de poemas como “No Meio do Caminho”, “Áporo” e “Procura da Poesia” — sua expressão mais condensada. Isso talvez resulte, finalmente, daquele fundo sentimento de derrota da ilusão, que Luís Augusto Fischer acusa neste mesmo poema do bardo mineiro, o que representaria, na sua acepção, nosso próprio jeito de ser (FISCHER, 2002).
Poema-síntese da poética drummondiana, “A Máquina do Mundo” revela-nos (e revela-se!) como o ponto máximo de todas as epifanias possíveis, inclusive a do ato poético, desvelador do eu mais obscuro de cada um de nós: revelação da existência universal, redenção da poesia…
*Maurício Silva é doutor em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo e professor dos cursos de Letras e Educação na Universidade Nove de Julho.
Adaptado do texto “Drummond e sua máquina do mundo”
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